A criança mexia na cabeça sem parar, colocava a mão perto do ouvido com muita freqüência e não conseguia dormir direito. Diante do quadro, a mãe não teve dúvidas: "É otite". Foi buscar um antiinflamatório na sua farmácia caseira, no armário do banheiro, e aplicou o remédio no ouvido do filho --na época com um ano de idade. Mesmo com três aplicações diárias, a criança não melhorava. Depois de dois dias, ao fazer um cafuné na criança, a mãe descobriu o que realmente a incomodava: "Era piolho".
O erro cometido pela publicitária gaúcha Sandra Maria Madalosso Rodrigues, 37, com seu filho Joel, 2, não foi o único. "Vou ser franca, esses enganos acontecem de vez em quando. Penso que é uma coisa e começo a tratar, mas, quando chego no pediatra, é outra", diz Sandra, que anda sempre com remédios na bolsa. "Se o nariz começa a escorrer, dou Naldecon [analgésico e antitérmico], que é o que normalmente as mães dão; se está enjoado, dou Tylenol [analgésico e antitérmico]. Mas todos esses são remédios fracos."
Fortes ou fracos, é preciso ter sempre em mente que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Ou, como prefere a médica Lúcia Ferro Bricks, "a diferença está em quem receita o medicamento". "O uso indevido do paracetamol [princípio ativo do Tylenol, na lista dos remédios "fracos" da publicitária], por exemplo, pode causar lesões no fígado e até a morte", afirma.
Pediatra do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (SP), Lúcia escreveu um estudo recente com o objetivo de rever a funcionalidade dos remédios dados a crianças para infecções respiratórias.
Na maioria dos países, segundo a pediatra, os três grupos de medicamentos mais utilizados em crianças --antibióticos, analgésicos/antitérmicos e medicamentos com ação no aparelho respiratório-- são indicados para o tratamento dos problemas respiratórios. "Muitos desses remédios são utilizados de forma inadequada, além de problemas como erros na dose, intervalo de administração e tempo de uso", afirma a pediatra em seu estudo.
Com o fácil acesso aos remédios, o forte apelo da publicidade e a recorrente alegação da "falta de tempo" para levar os filhos ao médico, o uso indiscriminado de medicamentos em crianças tem se tornado um hábito. E, diferentemente do que muita gente pensa, mesmo os remédios que podem ser comprados sem prescrição médica podem causar danos irreversíveis à saúde da criança --se usados de forma incorreta ou sem necessidade.
Para a presidente do Departamento de Segurança da Criança e do Adolescente, da Sociedade Brasileira de Pediatria, Renata Waksman, os hábitos culturais, a educação, a falta de legislação e, principalmente, o fácil acesso às farmácias contribuem para o alto nível de automedicação no país. Mas Renata levanta outro problema: "Existe abuso dos dois lados. Há os pais que não consultam os médicos e os médicos despreparados, que precisam se atualizar. Muitas vezes, quem leva a informação para um colega que está longe é o propagandista do laboratório, com um estudo e meia dúzia de amostras grátis debaixo do braço", afirma Waksman.
Esse não é um mal que atinge somente países em desenvolvimento. No início deste mês, a Academia Nacional de Farmácia da França divulgou uma pesquisa que evidencia uma freqüência alarmante nos erros de prescrição e de administração de medicamentos em pediatria. O estudo, coordenado por Françoise Brion, chefe do serviço de farmácia no hospital Robert-Debré (em Paris), foi realizado em 14 hospitais com 2.000 crianças menores de seis anos, hospitalizadas em 28 serviços pediátricos.
Entre outros dados, a pesquisa revelou que, em mais de um terço das aplicações de medicamentos injetáveis, a posologia e o modo de administração não correspondiam às recomendações da bula. Já os comprimidos, em cerca da metade dos casos, foram prescritos sem que a autorização de comercialização incluísse sua utilização em crianças com menos de seis anos -para aproximá-los da dosagem ideal, os comprimidos eram cortados ao meio ou esmigalhados de forma caseira, na maior parte das vezes.
"O médico prescreve remédios sem autorização para uso infantil, com cálculo exagerado da posologia e sem detalhar o protocolo a ser seguido. A enfermeira administra os medicamentos cuja dosagem e posologia são inadequadas, o que acaba requerendo adaptações grosseiras para cada paciente", afirma Françoise Brion, que acredita que a indústria farmacêutica precisa "aumentar os experimentos clínicos para que novos medicamentos de uso pediátrico sejam autorizados".
"Tenho pavor de pronto-socorro porque tive uma experiência que não foi boa. Levei minha filha lá num fim de semana e eles deram uma inalação de adrenalina, pois pensaram que ela tinha bronquite. Ela piorou. Na segunda, a pediatra disse que era laringite", afirma a artesã e dona-de-casa Eunice Florentino da Costa, 40, cuja filha, Camila, tem cinco anos.
Para evitar os prontos-socorros, Eunice resolveu ela mesma medicar sua filha em outra ocasião que a criança começou a tossir. "Usei um antialérgico que eu já tinha em casa, pois a médica havia receitado mais ou menos um mês atrás. Dei por três dias e ela não melhorou. Aí, fui ao médico e era sinusite. Teve de tomar antibiótico", diz.
Dicas:
*Siga as recomendações dos pediatras. Não dê medicamentos por conta própria para o seu filho, isto pode ser prejudicial à saúde.
*Na hora em que receber uma prescrição para seu filho, assegure-se de que tudo o que foi explicado está devidamente entendido. Em caso de dúvidas, pergunte antes de sair do consultório.
*Leia todas as informações das bulas e siga as orientações fornecidas pelo laboratório.
*Não use medicamentos contra tosse e resfriado em crianças com menos de dois anos de idade, a não ser que você receba orientações específicas de um médico para usá-los.
*Não dê doses maiores do que as recomendadas para uma criança ou em intervalos de tempo diferentes daqueles estabelecidos para cada medicação. O excesso de medicação pode trazer danos irreversíveis à saúde da criança. Certifique-se de que a dose correta está sendo dada à criança.
*Não suspenda um medicamento antes do prazo de uso estipulado pelo médico. Qualquer dúvida deve ser conversada com o pediatra.
*Não dê medicamentos de "USO ADULTO" para crianças. Use apenas os medicamentos de "USO PEDIÁTRICO".
*Informe ao pediatra todos os medicamentos que a criança está usando, para que o médico possa revisar e aprovar o uso combinado desses medicamentos.
*Use o dispositivo de dose que acompanha a embalagem do medicamento para oferecê-lo a uma criança. Ou seja, use o conta-gotas, colher medida ou o copo-medida que acompanha a embalagem do medicamento. Não troque por outro dispositivo como colher de chá, colher de sopa, etc. Isso pode alterar a dose que está sendo oferecida à criança. Caso não entenda como usar este dispositivo, NÃO USE. Pergunte primeiro ao médico sobre o uso correto do medicamento.
*Medicamentos contra tosse e resfriado apenas tratam os sintomas1 do resfriado como congestão, febre2, dor e irritabilidade. Eles não curam o resfriado. A criança melhora com o passar do tempo e evolução da doença, principalmente com o aumento da oferta de líquidos e repouso.
*Caso a criança não melhore ou piore, pare de usar o remédio e procure imediatamente um médico.
*Qualquer reação da criança ao uso de um novo medicamento deve ser imediatamente comunicada ao médico.
*Não deixe medicamentos ao alcance das crianças. Eles devem ser guardados em armários fechados e em uma altura que impeça o acesso das crianças aos mesmos.